Luís de Camões

Luís de Camões
SONETOS



              1Enquanto quis Fortuna que tivesse
              Esperança de algum contentamento,
              O gosto de um suave pensamento
              Me fez que seus efeitos escrevesse.
              Porém, temendo Amor que aviso desse
              Minha escritura a algum juízo isento,
              Escureceu-me o engenho co tormento,
              Para que seus enganos não dissesse.
              Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
              A diversas vontades, quando lerdes
              Num breve livro casos tão diversos,
              Verdades puras são, e não defeitos;
              E sabei que, segundo o amor tiverdes,
              Tereis o entendimento de meus versos.
              2
              Eu cantarei de amor tão docemente,
              Por uns termos em si tão concertados,
              Que dous mil acidentes namorados
              Faça sentir ao peito que não sente.
              Farei que o Amor a todos avivente,
              Pintando mil segredos delicados,
              Brandas iras, suspiros magoados,
              Temerosa ousadia e pena ausente.
              Também, Senhora, do desprezo honesto
              De vossa vista branda e rigorosa,
              Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
              Porém, para cantar de vosso gesto
              A composição alta e milagrosa,
              Aqui falta saber, engenho e arte.
              3
              Tanto de meu estado me acho incerto,
              Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
              Sem causa, juntamente choro e rio,
              O mundo todo abarco, e nada aperto.
              É tudo quanto sinto um desconcerto:
              Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
              Agora espero, agora desconfio;
              Agora desvario, agora acerto.
              Estando em terra, chego ao Céu voando;
              Num'hora acho mil anos, e é de jeito
              Que em mil anos não posso achar um'hora.
              Se me pergunta alguém porque assi ando,
              Respondo que não sei, porém suspeito
              Que só porque vos vi, minha Senhora.
              4
              Transforma-se o amador na cousa amada,
              Por virtude do muito imaginar;
              Não tenho, logo, mais que desejar,
              Pois em mim tenho a parte desejada.

              Se nela está minha alma transformada,
              Que mais deseja o corpo de alcançar?
              Em si somente pode descansar,
              Pois consigo tal alma está ligada.
              Mas esta linda e pura semidéia,
              Que, como o acidente em seu sujeito,
              Assim com a alma minha se conforma,
              Está no pensamento como idéia;
              E o vivo e puro amor de que sou feito,
              Como a matéria simples, busca a forma.
              5
              Passo por meus trabalhos tão isento
              De sentimento, grande nem pequeno,
              Que, só pela vontade com que peno,
              Me fica Amor devendo mais tormento.
              Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
              Temparando a triaga co veneno,
              Que do penar a ordem desordeno,
              Porque não mo consente o sofrimento.
              Porém, se esta fineza o Amor sente,
              E pagar-me meu mal com mal pretende,
              Torna-me com prazer como ao sol neve.
              Mas se me vê cos males tão contente,
              Faz-se avaro da pena, porque entende
              Que, quanto mais me paga, mais me deve.
              6
              À morte de D. Antônio de Noronha
              Em flor vos arrancou de então crescida
              (Ah! Senhor dom Antônio!) a dura sorte,
              Donde fazendo andava o braço forte
              A fama dos Antigos esquecida;
              Uma só razão tenho conhecida,
              Com que tamanha mágoa se conforte:
              Que, pois no mundo havia honrada morte,
              Que não podíeis ter mais larga a vida.
              Se meus humildes versos podem tanto,
              Que co desejo meu se iguale a arte,
              Especial matéria me sereis.
              E, celebrado em triste e longo canto,
              Se morrestes nas mãos do fero Marte,
              Na memória das gentes vivereis.
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              Num jardim adornado de verdura,
              A que esmaltam por cima várias flores,
              Entrou um dia a deusa dos amores,
              Com a deusa da caça e da espessura.
              Diana tomou logo uma rosa pura,
              Vênus um roxo lírio, dos melhores;
              Mas excediam muito às outras flores
              As violas, na graça e fermosura.
              Perguntam a Cupido, que ali estava,
              Qual daquelas três flores tomaria,
              Por mais suave, pura e mais fermosa.
              Sorrindo-se, o Menino lhe tornava:
              -- Todas fermosas são; mas eu queria
              Viol' antes que lírio nem que rosa.
              8
              Busque Amor novas artes, novo engenho,
              Para matar-me, e novas esquivanças,
              Que não pode tirar-me as esperanças,
              Que mal me tirará o que eu não tenho.
              Olhai de que esperanças me mantenho!
              Vede que perigosas seguranças!
              Que não temo contrastes, nem mudanças,
              Andando em bravo mar, perdido o lenho.
              Mas, conquanto não pode haver desgosto
              Onde esperança falta, lá me esconde
              Amor um mal que mata e não se vê:
              Que dias há que na alma me tem posto
              Um não sei quê, que nasce não sei onde,
              Vem não sei como, e dói não sei por quê.
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              Quem vê, Senhora, claro e manifesto
              O lindo ser de vossos olhos belos,
              Se não perder a vista só em vê-los,
              Já não paga o que deve a vosso gesto.
              Este me parecia preço honesto,
              Mas eu, por de vantagem merecê-los,
              Dei mais a vida e alma por querê-los,
              Donde já me não fica mais de resto.
              Assi que a vida e alma e esperança
              E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
              E o proveito disso eu só o levo:
              Porque é tamanha bem-aventurança
              O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
              Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.
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              Quando da bela vista e doce riso
              Tomando estão meus olhos mantimento,
              Tão enlevado sinto o pensamento
              Que me faz ver na terra o Paraíso.
              Tanto do bem humano estou diviso,
              Que qualquer outro bem julgo por vento;
              Assi que em caso tal, segundo sento,
              Assaz de pouco faz quem perde o siso.
              Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
              Porque, quem vossas cousas claro sente,
              Sentirá que não pode merecê-las.
              Que de tanta estranheza sois ao mundo,
              Que não é de estranhar, Dama excelente,
              Que quem vos fez fizesse céu e estrelas.
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              Doces lembranças da passada glória,
              Que me tirou Fortuna roubadora,
              Deixai-me repousar em paz uma hora,
              Que comigo ganhais pouca vitória.
              Impressa tenho n'alma larga história
              Deste passado bem que nunca fora,
              Ou fora, e não passara, mas já agora
              Em mim não pode haver mais que a memória.
              Vivo em lembranças, mouro de esquecido
              De quem sempre devera ser lembrado,
              Se lhe lembrara estado tão contente.
              Oh! Quem tornar pudera a ser nascido!
              Soubera-me lograr do bem passado,
              Se conhecer soubera o mal presente.
              12
              Alma minha gentil, que te partiste
              Tão cedo desta vida descontente,
              Repousa lá no Céu eternamente
              E viva eu cá na terra sempre triste.
              Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
              Memória desta vida se consente,
              Não te esqueças daquele amor ardente
              Que já nos olhos meus tão puro viste.
              E se vires que pode merecer-te
              Alguma cousa a dor que me ficou
              Da mágoa sem remédio de perder-te,
              Roga a Deus, que teus anos encurtou,
              Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
              Quão cedo de meus olhos te levou.
              13
              Num bosque que das Ninfas se habitava,
              Sílvia, Ninfa linda, andava um dia
              Subida numa árvore sombria,
              As amarelas flores apanhava.
              Cupido, que ali sempre costumava
              A vir passar a sesta à sombra fria,
              Num ramo o arco e setas que trazia,
              Antes que adormecesse, pendurava.
              A Ninfa, como idôneo tempo vira
              Para tamanha empresa, não dilata,
              Mas com as armas foge ao Moço esquivo.
              As setas traz nos olhos, com que tira.
              -- Ó pastores, fugi, que a todos mata,
              Senão a mim, que de matar-me vivo.
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              Os reinos e os impérios poderosos
              Que em grandeza no mundo mais cresceram
              Ou por valor de esforço floresceram,
              Ou por varões nas letras espantosos.
              Teve Grécia Temístocles famosos,
              Os Cipiões a Roma engrandeceram,
              Doze pares a França glória deram,
              Cides a Espanha, e Laras belicosos.
              Ao nosso Portugal (que agora vemos
              Tão diferente de seu ser primeiro)
              Os vossos deram honra e liberdade.
              E em vós, grão sucessor e novo herdeiro
              Do Braganção estado, há mil extremos
              Iguais ao sangue e mores que a idade.
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              De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança,
              Sinto vivo da morte o sentimento;
              Não sei para que é ter contentamento,
              Se mais há-de perder quem mais alcança.
              Mas dou-vos esta firme segurança:
              Que, posto que me mate meu tormento,
              Pelas águas do eterno esquecimento
              Segura passará minha lembrança.
              Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
              Que com qualquer cous'outra se contentem;
              Antes os esqueçais, que vos esqueçam.
              Antes nesta lembrança se atormentem,
              Que com esquecimento desmereçam
              A glória que em sofrer tal pena sentem.
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              Cara minha inimiga, em cuja mão
              Pôs meus contentamentos a Ventura,
              Faltou-te a ti na terra sepultura,
              Porque me falte a mim consolação.
              Eternamente as águas lograrão
              A tua peregrina fermosura,
              Mas, enquanto me a mim a vida dura,
              Sempre viva em minha alma te acharão;
              E se meus rudos versos podem tanto,
              Que possam prometer-te longa história
              Daquele amor tão puro e verdadeiro,
              Celebrada serás sempre em meu canto,
              Porque, enquanto no mundo houver memória,
              Será minha escritura teu letreiro.
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              Aquela triste e leda madrugada,
              Cheia toda de mágoa e de piedade,
              Enquanto houver no mundo saudade
              Quero que seja sempre celebrada.
              Ela só, quando amena e marchetada
              Saía, dando ao mundo claridade,
              Viu apartar-se duma outra vontade
              Que nunca poderá ver-se apartada.
              Ela só viu as lágrimas em fio,
              Que, de uns e de outros olhos derivadas,
              Se acrescentaram em grande e largo rio.
              Ela ouviu as palavras magoadas
              Que puderam tornar o fogo frio,
              E dar descanso às almas condenadas.
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              Se quando vos perdi, minha esperança,
              A memória perdera juntamente
              Do doce bem passado e mal presente,
              Pouco sentira a dor de tal mudança.
              Mas Amor, em quem tinha confiança,
              Me representa mui miudamente
              Quantas vezes me vi ledo e contente,
              Por me tirar a vida esta lembrança.
              De cousas de que não havia sinal,
              Por as ter postas já em esquecimento,
              Destas me vejo agora perseguido.
              Ah, dura estrela minha! ah, grão tormento!
              Que mal pode ser mor que, no meu mal,
              Ter lembrança do bem que é já perdido?
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              Em fermosa Letéia se confia,
              Por onde vaidade tanto alcança
              Que, tornada em soberba a confiança,
              Com os deuses celestes competia.
              Por que não fosse avante esta ousadia
              (Que nascem muitos erros da tardança),
              Em efeito puseram a vingança,
              Que tamanha doudice merecia.
              Mas Oleno, perdido por Letéia,
              Não lhe sofrendo Amor que suportasse
              Castigo duro tanta fermosura,
              Quis padecer em si a pena alheia;
              Mas, por que a morte Amor não apartasse,
              Ambos tornados são em pedra dura.
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              Males que contra mi vos conjurastes,
              Quanto há de durar tão duro intento?
              Se dura porque dura meu tormento,
              Baste-vos quanto já me atormentastes.
              Mas se assi perfiais, porque cuidastes
              Derrubar meu tão alto pensamento?
              Mais pode a causa dele, em que o sustento,
              Que vós, que dela mesma o ser tomastes.
              E pois vossa tenção com minha morte
              Há-de acabar o mal destes amores,
              Dai já fim a um tormento tão comprido,
              Porque de ambos contentes seja a sorte:
              Vós, porque me acabastes, vencedores;
              E eu, porque acabei, de vós vencido.
              21
              Está-se a Primavera trasladando
              Em vossa vista deleitosa e honesta;
              Nas lindas faces, olhos, boca e testa,
              Boninas, lírios, rosas debuxando.
              De sorte, vosso gesto matizando,
              Natura quanto pode manifesta,
              Que o monte, o campo, o rio e a floresta
              Se estão de vós, Senhora, namorando.
              Se agora não quereis que quem vos ama
              Possa colher o fruito destas flores,
              Perderão toda a graça vossos olhos.
              Porque pouco aproveita, linda Dama,
              Que semeasse Amor em vós amores,
              Se vossa condição produze abrolhos.
              22
              Sete anos de pastor Jacob servia
              Labão, pai de Raquel, serrana bela;
              Mas não servia ao pai, servia a ela,
              E a ela só por prêmio pretendia.

              Os dias na esperança de um só dia
              Passava, contentando-se com vê-la;
              Porém o pai, usando de cautela,
              Em lugar de Raquel, lhe dava Lia.

              Vendo o triste pastor que com enganos
              Lhe fora assi negada a sua pastora,
              Como se a não tivera merecida,
              Começa de servir outros sete anos,
              Dizendo: -- Mais servira, se não fora
              Para tão longo amor tão curta a vida.
              23
              Está o lascivo e doce passarinho
              Com o biquinho as penas ordenando,
              O verso sem medida, alegre e brando,
              Expedindo no rústico raminho.

              O cruel caçador (que do caminho
              Se vem, calado e manso, desviando)
              Na pronta vista a seta endireitando,
              Lhe dá no Estígio lago eterno ninho.
              Destarte o coração, que livre andava
              (Posto que já de longe destinado),
              Onde menos temia foi ferido.
              Porque o Frecheiro cego me esperava,
              Para que me tomasse descuidado,
              Em vossos claros olhos escondido.
              24
              Pede o desejo, Dama, que vos veja;
              Não entende o que pede, está enganado;
              É este amor tão fino e tão delgado,
              Que quem o tem não sabe o que deseja.
              Não há cousa a qual natural seja,
              Que não queira perpétuo seu estado;
              Não quer, logo, o desejo o desejado,
              Porque não falte nunca onde sobeja.
              Mas este puro afeito em mim se dana,
              Que, como a grave pedra tem por arte
              O centro desejar da Natureza,
              Assi o pensamento (pela parte
              Que vai tomar de mim, terrestre, humana)
              Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
              25
              Por que quereis, Senhora, que ofereça
              A vida a tanto mal como padeço?
              Se vos nasce do pouco que mereço,
              Bem por nascer está quem vos mereça.
              Sabei que enfim, por muito que vos peça,
              Que posso merecer quanto vos peço,
              Que não consente Amor que em baixo preço
              Tão alto pensamento se conheça.
              Assi que a paga igual de minhas dores
              Com nada se restaura, mas deveis-ma,
              Por ser capaz de tantos desfavores.
              E se o valor de vossos servidores
              Houver de ser igual convosco mesma,
              Vós só convosco mesma andai d'amores.
              26
              Se tanta pena tenho merecida
              Em pago de sofrer tantas durezas,
              Provai, Senhora, em mi vossas cruezas,
              Que aqui tendes uma alma oferecida.
              Nela experimentai, se sois servida,
              Desprezos, desfavores e asperezas,
              Que mores sofrimentos e firmezas
              Sustentarei na guerra desta vida.
              Mas contra vossos olhos quais serão?
              Forçado é que tudo se lhe renda,
              Mas porei por escudo o coração.
              Porque em tão dura e áspera contenda,
              É bem que, pois não acho defensão,
              Com me meter nas lanças me defenda.
              27
              Quando o Sol encoberto vai mostrando
              Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
              Ao longo de uma praia deleitosa,
              Vou na minha inimiga imaginando.
              Aqui a vi os cabelos concertando,
              Ali co'a mão na face, tão fermosa,
              Aqui falando alegre, ali cuidosa,
              Agora estando queda, agora andando.
              Aqui esteve sentada, ali me viu,
              Erguendo aqueles olhos tão isentos;
              Aqui movida um pouco, ali segura;
              Aqui se entristeceu, ali se riu.
              Enfim, nestes cansados pensamentos
              Passo esta vida vã, que sempre dura.
              28
              Um mover de olhos, brando e piedoso,
              Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
              Quase forçado; um doce e humilde gesto,
              De qualquer alegria duvidoso.
              Um despejo quieto e vergonhoso,
              Um repouso gravíssimo e modesto,
              Uma pura bondade, manifesto
              Indício da alma, limpo e gracioso;
              Um encolhido ousar; uma brandura,
              Um medo sem ter culpa, um ar sereno,
              Um longo e obediente sofrimento:
              Esta foi a celeste fermosura
              Da minha Circe, e o mágico veneno
              Que pôde transformar meu pensamento.
              29
              Tomou-me vossa vista soberana
              Adonde tinha as armas mais à mão,
              Por mostrar que quem busca defensão
              Contra esses belos olhos, que se engana.
              Por ficar da vitória mais ufana,
              Deixou-me armar primeiro da Razão:
              Cuidei de me salvar, mas foi em vão,
              Que contra o Céu não val defensa humana.
              Mas porém, se vos tinha prometido
              O vosso alto destino esta vitória,
              Ser-vos tudo bem pouco está sabido;
              Que, posto que estivesse apercebido,
              Não levais de vencer-me grande glória;
              Maior a levo eu de ser vencido.
              30
              -- Não passes, caminhante. -- Quem me chama?
              -- Uma memória nova, e nunca ouvida,
              Dum que trocou finita e humana vida,
              Por divina, infinita e clara fama.
              -- Quem é que tão gentil louvor derrama?
              -- Quem derramar seu sangue não duvida
              Por seguir a bandeira esclarecida
              De um capitão de Cristo que mais ama.
              -- Ditoso fim, ditoso sacrifício
              Que a Deus se fez, e ao mundo juntamente!
              Apregoando direi tão alta sorte.
              -- Mais poderás contar a toda a gente
              Que sempre deu sua vida claro indício
              De vir a merecer tão santa morte.
              31
              Fermosos olhos que na idade nossa
              Mostrais do Céu certíssimos sinais,
              Se quereis conhecer quanto possais,
              Olhai-me a mim, que sou feitura vossa:
              Vereis que de viver me desapossa
              Aquele riso com que a vida dais;
              Vereis como de Amor não quero mais,
              Por mais que o tempo corra e o dano possa;
              E se dentro nest'alma ver quiserdes,
              Como num claro espelho, ali vereis
              Também a vossa, angélica e serena;
              Mas eu cuido que, só por não me verdes,
              Ver-vos em mim, Senhora, não quereis,
              Tanto gosto levais de minha pena.
              32
              O fogo que na branda cera ardia,
              Vendo o rosto gentil que eu n'alma vejo,
              Se acendeu de outro fogo do desejo,
              Por alcançar a luz que vence o dia.
              Como de dous ardores se encendia,
              Da grande impaciência fez despejo,
              E, remetendo com furor sobejo,
              Vos foi beijar na parte onde se via.
              Ditosa aquela flama, que se atreve
              A apagar seus ardores e tormentos
              Na vista de que o mundo tremer deve.
              Namoram-se, Senhora, os Elementos
              De vós, e queima o fogo aquela neve
              Que queima corações e pensamentos.
              33
              Alegres campos, verdes arvoredos,
              Claras e frescas águas de cristal,
              Que em vós os debuxais ao natural,
              Discorrendo da altura dos rochedos;

              Silvestres montes, ásperos penedos
              Compostos em concerto desigual,
              Sabei que, sem licença de meu mal,
              Já não podeis fazer meus olhos ledos.

              E pois me já não vedes como vistes,
              Não me alegrem verduras deleitosas,
              Nem águas que correndo alegres vêm.

              Semearei em vós lembranças tristes,
              Regando-vos com lágrimas saudosas,
              E nascerão saudades de meu bem.
              34
              Quantas vezes do fuso se esquecia
              Daliana, banhando o lindo seio,
              Tantas vezes, de um áspero receio
              Salteado, Laurênio a cor perdia.
              Ela, que a Sílvio mais que a si queria,
              Para podê-lo ver não tinha meio:
              Ora, como curara o mal alheio
              Quem o seu mal tão mal curar sabia?
              Ele, que viu tão clara esta verdade,
              Com soluços dizia (que a espessura
              Comovia, de mágoa, a piedade):
              -- Como pode a desordem da Natura
              Fazer tão diferentes na vontade
              A quem fez tão conformes na ventura?
              35
              Lindo e sutil trançado, que ficaste
              Em penhor do remédio que mereço,
              Se só contigo, vendo-te, endoudeço,
              Que fora c'os cabelos que apertaste?
              Aquelas tranças de ouro que ligaste,
              Que os raios do Sol têm em pouco preço,
              Não sei se para engano do que peço,
              Se para me atar, os desataste.
              Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
              E, por satisfação de minhas dores,
              Como quem não tem outra, hei-de tomar-te;
              E, se não for contente meu desejo,
              Dir-lhe-ei que, nesta regra dos amores,
              Pelo todo também se toma a parte.
              36
              O cisne, quando sente ser chegada
              A hora que põe termo à sua vida,
              Música com voz alta e mui subida
              Levanta pela praia inabitada.
              Deseja ter a vida prolongada,
              Chorando do viver a despedida;
              Com grande saudade da partida,
              Celebra o triste fim desta jornada.
              Assi, Senhora minha, quando via
              O triste fim que davam meus amores,
              Estando posto já no extremo fio,
              Com mais suave canto e harmonia
              Descantei pelos vossos desfavores,
              La vuestra falsa fe y el amor mio.
              37
              Pelos extremos raros que mostrou
              Em saber Palas, Vênus em fermosa,
              Diana em casta, Juno em animosa,
              África, Europa e Ásia as adorou.
              Aquele saber grande, que ajuntou
              Espírito e corpo em liga generosa,
              Esta mundana máquina lustrosa
              De só quatro Elementos fabricou.
              Mas mor milagre fez a Natureza
              Em vós, senhoras, pondo em cada uma
              O que por todas quatro repartiu:
              A vós seu resplandor deu Sol e Lua,
              A vós, com viva luz, graça e pureza,
              Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.
              38
              Tomava Daliana, por vingança
              Da culpa do pastor, que tanto amava,
              Casar com Gil vaqueiro, e em si vingava
              O erro alheio e pérfida esquivança.
              A discrição segura, a confiança,
              As rosas que seu rosto debuxava,
              O descontentamento lhas secava,
              Que tudo muda uma áspera mudança.
              Gentil planta disposta em seca terra,
              Lindo fruito de dura mão colhido,
              Lembranças d'outro amor e fé perjura
              Tornaram verde prado em dura serra;
              Interesse enganoso, amor fingido
              Fizeram desditosa a fermosura.
              39
              Grão tempo há já que soube da Ventura
              A vida que me tinha destinada,
              Que a longa experiência da passada
              Me dava claro indício da futura.
              Amor fero, cruel, Fortuna dura,
              Bem tendes vossa força exp'rimentada;
              Assolai, destruí, não fique nada,
              Vingai-vos desta vida que inda dura.
              Soube Amor, da Ventura, que a não tinha,
              E, porque mais sentisse a falta dela,
              De imagens impossíveis me mantinha.
              Mas vós, Senhora, pois que minha estrela
              Não foi melhor, vivei nesta alma minha,
              Que não tem a Fortuna poder nela.
              40
              Se alguma hora em vós a piedade
              De tão longo tormento se sentira,
              Não consentira Amor que me partira
              De vossos olhos, minha saudade.
              Apartei-me de vós, mas a vontade,
              Que pelo natural n'alma vos tira,
              Me faz crer que esta ausência é de mentira,
              Mas inda mal, porém, porque é verdade.
              Ir-me-ei, Senhora, e neste apartamento,
              Tomarão tristes lágrimas vingança
              Nos olhos de quem fostes mantimento:
              E assi darei vida a meu tormento,
              Que enfim cá me achará minha lembrança,
              Sepultado no vosso esquecimento.
              41
              Oh, como se me alonga de ano em ano
              A peregrinação cansada minha!
              Como se encurta e como ao fim caminha
              Este meu breve e vão discurso humano!
              Vai-se gastando a idade e cresce o dano,
              Perde-se-me um remédio, que inda tinha;
              Se por experiência se adivinha,
              Qualquer grande esperança é grande engano.
              Corro após este bem que não se alcança;
              No meio do caminho me falece,
              Mil vezes caio e perco a confiança.
              Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
              Se os olhos ergo a ver se inda parece,
              Da vista se me perde, e da esperança.
              42
              Tempo é já que minha confiança
              Se desça de uma falsa opinião,
              Mas Amor não se rege por razão;
              Não posso perder logo a esperança,
              A vida, si, que uma áspera mudança
              Não deixa viver tanto um coração;
              E eu na morte tenho a salvação?
              Si, mas quem a deseja não a alcança,
              Forçado é logo que eu espere e viva.
              Ah, dura lei de Amor, que não consente
              Quietação numa alma que é cativa!
              Se hei-de viver, enfim, forçadamente,
              Para que quero a glória fugitiva
              De uma esperança vã que me atormente?
              43
              Amor, co'a esperança já perdida
              Teu soberano templo visitei;
              Por sinal do naufrágio que passei,
              Em lugar dos vestidos, pus a vida.
              Que queres mais de mim, que destruída
              Me tens a glória toda que alcancei?
              Não cuides de forçar-me, que não sei
              Tornar a entrar onde não há saída.
              Vês aqui alma, vida e esperança,
              Despojos doces de meu bem passado,
              Enquanto quis aquela que eu adoro:
              Neles podes tomar de mim vingança;
              E se inda não estás de mim vingado,
              Contenta-te co'as lágrimas que choro.
              44
              Apolo e as nove Musas, discantando
              Com a dourada lira, me influíam
              Na suave harmonia que faziam,
              Quando tomei a pena, começando:
              "Ditoso seja o dia e hora, quando
              Tão delicados olhos me feriam!
              Ditosos os sentidos que sentiam
              Estar-se em seu desejo traspassando!"
              Assi cantava, quando Amor virou
              A roda à Esperança, que corria
              Tão ligeira, que quase era invisível.
              Converteu-se-me em noite o claro dia;
              E, se alguma esperança me ficou,
              Será de maior mal, se for possível.
              45
              Lembranças saudosas, se cuidais
              De me acabar a vida neste estado,
              Não vivo com meu mal tão enganado,
              Que não espere dele muito mais.
              De muito longe já me costumais
              A viver de algum bem desesperado;
              Já tenho co'a Fortuna concertado
              De sofrer os trabalhos que me dais.
              Atado ao remo tenho a paciência
              Para quantos desgostos der a vida,
              Cuide em quanto quiser o pensamento.
              Que pois não há i outra resistência
              Para tão certa queda da caída,
              Aparar-lhe-ei debaixo o sofrimento.
              46
              Apartava-se Nise de Montano,
              Em cuja alma, partindo-se, ficava;
              Que o pastor na memória a debuxava,
              Por poder sustentar-se deste engano.
              Pelas praias do Índico Oceano
              Sobre o curvo cajado se encostava,
              E os olhos pelas águas alongava,
              Que pouco se doíam de seu dano.
              -- Pois com tamanha mágoa e saudade
              De mim se foi -- dizia -- quem adoro,
              Por testemunhas tomo Céu e estrelas;
              Mas se em vós, ondas, mora piedade,
              Levai também as lágrimas que choro,
              Pois assi me levais a causa delas.
              47
              Quando vejo que meu destino ordena
              Que, por me exp'rimentar, de vós me aparte,
              Deixando de meu bem tão grande parte,
              Que a mesma culpa fica grave pena;
              O duro desfavor que me condena,
              Quando pela memória se reparte,
              Endurece os sentidos de tal arte,
              Que a dor da ausência fica mais pequena.
              Pois como pode ser que na mudança
              Daquilo que mais quero estê tão fora
              De me não apartar também da vida?
              Eu refrearei tão áspera esquivança,
              Porque mais sentirei partir, Senhora,
              Sem sentir muito a pena da partida.
              48
              Náiades, vós que os rios habitais
              Que os saudosos campos vão regando,
              De meus olhos vereis estar manando
              Outros, que quase aos vossos são iguais.
              Dríades, vós que as setas atirais,
              Os fugitivos cervos derrubando,
              Outros olhos vereis que, triunfando,
              Derrubam corações que valem mais.
              Deixai as aljavas logo, e as águas frias,
              E vinde, Ninfas minhas, se quereis
              Saber como de uns olhos nascem mágoas;
              Vereis como se passam em vão os dias,
              Mas não vireis em vão, que cá achareis
              Nos seus as setas, e nos meus as águas.
              49
              Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
              Muda-se o ser, muda-se a confiança;
              Todo o mundo é composto de mudança,
              Tomando sempre novas qualidades.
              Continuamente vemos novidades,
              Diferentes em tudo da esperança;
              Do mal ficam as mágoas na lembrança,
              E do bem (se algum houve) as saudades.
              O tempo cobre o chão de verde manto,
              Que já coberto foi de neve fria,
              E enfim converte em choro o doce canto.
              E, afora este mudar-se cada dia,
              Outra mudança faz de mor espanto,
              Que não se muda já como soía.
              50
              Se as penas com que Amor tão mal me trata
              Quiser que tanto tempo viva delas,
              Que veja escuro o lume das estrelas,
              Em cuja vista o meu se acende e mata;
              E se o tempo, que tudo desbarata,
              Secar as frescas rosas sem colhê-las,
              Mostrando a linda cor das tranças belas
              Mudada de ouro fino em bela prata;
              Vereis, Senhora, então também mudado
              O pensamento e aspereza vossa,
              Quando não sirva já sua mudança:
              Suspirareis então pelo passado,
              Em tempo quando executar se possa
              Em vosso arrepender minha vingança.
              51
              À sepultura del-Rei D. João III
              -- Quem jaz no grão sepulcro que descreve
              Tão ilustres sinais no forte escudo?
              -- Ninguém, que nisso enfim se torna tudo,
              Mas foi quem tudo pôde e tudo teve.
              -- Foi Rei? -- Fez tudo quanto a Rei se deve;
              Pôs na guerra e na paz devido estudo,
              Mas quão pesado foi ao Mouro rudo
              Tanto lhe seja agora a terra leve.
              -- Alexandre será? -- Ninguém se engane,
              Que sustentar, mais que adquirir se estima.
              -- Será Adriano, grão senhor do mundo?
              -- Mais observante foi da lei de cima.
              -- É Numa? -- Numa não, mas é Joane,
              De Portugal Terceiro, sem segundo.
              52
              Quem pode livre ser, gentil Senhora,
              Vendo-vos com juízo sossegado,
              Se o Menino que de olhos é privado
              Nas meninas dos vossos olhos mora?
              Ali manda, ali reina, ali namora,
              Ali vive das gentes venerado,
              Que o vivo lume e o rosto delicado
              Imagens são, nas quais o Amor se adora.
              Quem vê que em branca neve nascem rosas
              Que fios crespos de ouro vão cercando,
              Se por entre esta luz a vista passa,
              Raios de ouro verá, que as duvidosas
              Almas estão no peito traspassando,
              Assi como um cristal o Sol traspassa.
              53-- Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
              Foi voluntária, ou foi por inocência?
              -- Mas foi fazer Amor experiência
              Se podia sofrer tirar-me a vida.
              -- E com teu próprio sangue te convida
              A não pores à vida resistência?
              -- Ando-me acostumando à paciência,
              Porque o temor a morte não impida.
              -- Pois por que comes logo fogo ardente,
              Se a ferro te costumas? -- Porque ordena
              Amor que morra e pene juntamente.
              -- E tens a dor do ferro por pequena?
              -- Si: que a dor costumada não se sente.
              E eu não quero a morte sem a pena.
              54
              Resposta do Autor a um soneto,
              pelos mesmos consoantes
              De tão divino acento e voz humana,
              De tão doces palavras peregrinas,
              Bem sei que minhas obras não são dinas,
              Que o rudo engenho meu me desengana;
              Mas de vossos escritos corre e mana
              Licor que vence as águas cabalinas,
              E convosco do Tejo as flores finas
              Farão inveja à cópia mantuana.
              E pois a vós de si não sendo avaras,
              As filhas de Mnemósine fermosa
              Partes dadas vos tem ao mundo caras,
              A minha Musa e a vossa tão famosa,
              Ambas posso chamar ao mundo raras,
              A vossa de alta, a minha de invejosa.
              55
              À sepultura de D. Fernando de Castro
              Debaixo desta pedra está metido,
              Das sanguinosas armas descansado,
              O capitão ilustre, assinalado,
              Dom Fernando de Castro esclarecido.
              Por todo o Oriente tão temido,
              E da inveja da fama tão cantado,
              Este, pois, só agora sepultado,
              Está aqui já em terra convertido.
              Alegra-te, ó guerreira Lusitânia,
              Por este Viriato que criaste,
              E chora-o, perdido, eternamente.
              Exemplo toma nisto de Dardânia,
              Que, se a Roma co ele aniquilaste,
              Nem por isso Cartago está contente.
              56
              Vossos olhos, Senhora, que competem
              Co Sol em fermosura e claridade,
              Enchem os meus de tal suavidade
              Que em lágrimas, de vê-los, se derretem.
              Meus sentidos vencidos se sometem
              Assi cegos a tanta divindade,
              E da triste prisão, da escuridade,
              Cheios de medo, por fugir remetem.
              Mas se nisto me vedes, por acerto,
              O áspero desprezo, com que olhais
              Torna a espertar a alma enfraquecida.
              Ó gentil cura e estranho desconcerto!
              Que fará o favor que vós não dais,
              Quando o vosso desprezo torna a vida?
              57
              Pois meus olhos não cansam de chorar
              Tristezas, que não cansam de cansar-me,
              Pois não abranda o fogo em que abrasar-me
              Pôde quem eu jamais pude abrandar;
              Não canse o cego Amor de me guiar
              A parte donde não saiba tornar-me,
              Nem deixe o mundo todo de escutar-me
              Enquanto me a voz fraca não deixar.
              E se em montes, rios, ou em vales,
              Piedade mora, ou dentro mora Amor
              Em feras, aves, prantas, pedras, águas,
              Ouçam a longa história de meus males
              E curem sua dor com minha dor;
              Que grandes mágoas podem curar mágoas.
              58
              Dai-me uma lei, Senhora, de querer-vos,
              Que a guarde, sob pena de enojar-vos;
              Que a fé, que me obriga a tanto amar-vos,
              Fará que fique em lei de obedecer-vos.
              Tudo me defendei, senão só ver-vos
              E dentro na minh' alma contemplar-vos;
              Que, se assi não chegar a contentar-vos,
              Ao menos que não chegue a aborrecer-vos.
              E se essa condição cruel e esquiva
              Que me deis lei de vida não consente,
              Dai-ma, Senhora, já, seja de morte.
              Se nem essa me dais, é bem que viva
              Sem saber como vivo tristemente,
              Mas contente porém de minha sorte.




SONETOS DA EDIÇÃO DE 1598
59Com grandes esperanças já cantei,
Com que os deuses no Olimpo conquistara;
Despois vim a chorar, porque cantara,
E agora choro já porque chorei.
Se cuido nas passadas que já dei,
Custa-me esta lembrança só tão cara,
Que a dor de ver as mágoas que passara,
Tenho pela mor mágoa que passei.
Pois logo se está claro que um tormento
Dá causa que outro n'alma se acrescente,
Já nunca posso ter contentamento.
Mas esta fantasia se me mente?
Oh Ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?
60
Em prisões baixas fui um tempo atado,
Vergonhoso castigo de meus erros;
Inda agora arrojando levo os ferros
Que a Morte a meu pesar tem já quebrado.
Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros, nem bezerros;
Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.
Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo;
Mas minha estrela, que eu já agora entendo,
A Morte cega e o Caso duvidoso,
Me fizeram de gostos haver medo.
61
Ilustre e dino ramo dos Meneses,
Aos quais o prudente e largo Céu
(Que errar não sabe) em dote concedeu
Rompesse os maométicos arneses,
Desprezando a Fortuna e seus revezes,
Ide para onde o Fado vos moveu,
Erguei flamas no mar alto Eritreu
E sereis nova luz aos Portugueses.
Oprimi com tão firme e forte peito
O pirata insolente, que se espante
E trema Taprobana e Gadrosia;
Dai nova causa à cor do Arabo estreito:
Assi que o Roxo Mar, daqui em diante,
O seja só co sangue de Turquia!
62
No tempo que de Amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes, agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse num só fogo, não queria
O Céu, porque tivesse exp'rimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co peso descansou
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento.
63
Amor, que o gesto humano n' alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera num momento,
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.
64
Ferido sem ter cura perecia
O forte e duro Télefo temido,
Por aquele que n'água foi metido,
A quem ferro nenhum cortar podia.
Ao Apolíneo Oráculo pedia
Conselho para ser restituído;
Respondeu que tornasse a ser ferido
Por quem o já ferira, e sararia.
Assi, Senhora, quer minha ventura
Que, ferido de ver-vos claramente
Com vos tornar a ver Amor me cura.
Mas é tão doce vossa fermosura,
Que fico como hidrópico doente,
Que co beber lhe cresce mor secura.
65
Na metade do Céu subido ardia
O claro, almo Pastor, quando deixavam
O verde pasto as cabras, e buscavam
A frescura suave da água fria;
Co a folha da árvore sombria,
Do raio ardente as aves se amparavam,
O módulo cantar, de que cessavam,
Só nas roucas cigarras se sentia;
Quando Liso pastor, num campo verde
Natércia, crua Ninfa, só buscava
Com mil suspiros tristes que derrama:
-- Porque te vás, de quem por ti se perde
Para quem pouco te ama? -- suspirava.
O Eco lhe responde: -- Pouco te ama.
66
Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquela alma me aparece
Que para mim foi sonho nesta vida.
Lá numa soidade, onde estendida
A vista pelo campo desfalece,
Corro para ela e ela então parece
Que mais de mim se alonga, compelida.
Brado: -- Não me fujais, sombra benina! --
Ela (os olhos em mim cum brando pejo,
Como quem diz que já não pode ser)
Torna a fugir-me. E eu gritando: -- Dina...--
Antes que diga mene, acordo e vejo
Que nem um breve engano posso ter.
67
Suspiros inflamados, que cantais
A tristeza com que eu vivi tão ledo,
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Lete vos percais.
Escritos para sempre já ficais
Onde vos mostrarão todos co dedo
Como exemplo de males, que eu concedo
Que para aviso de outros estejais.
Em quem, pois, virdes falsas esperanças
De Amor e da Fortuna, cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças,
Dizei-lhe que os servistes muitos anos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não há senão enganos.
68
Aquela fera humana que enriquece
Sua presuntuosa tirania
Destas minhas entranhas, onde cria
Amor um mal que falta quando cresce;
Se nela o Céu mostrou (como parece)
Quanto mostrar ao mundo pretendia,
Por que de minha vida se injuria?
Por que de minha morte se enobrece?
Ora, enfim, sublimai vossa vitória,
Senhora, com vencer-me e cativar-me:
Fazei disto no mundo larga história,
Que, por mais que vos veja maltratar-me,
Já me fico logrando desta glória
De ver que tendes tanta de matar-me.
69
Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças,
Pois por elas não perde as esperanças
De poder n'algum tempo ser contente.
Ditoso seja quem, estando ausente,
Não sente mais que a pena das lembranças,
Porque inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, enfim, qualquer estado
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar n'alma a mágoa do pecado.
70
O culto divinal se celebrava
No templo donde toda a criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.
Ali Amor, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura,
Numa celeste e angélica figura
A vista da razão me salteava.
Eu, crendo que o lugar me defendia,
E meu livre costume não sabendo
-- Que nenhum confiado lhe fugia --,
Deixei-me cativar; mas já que entendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.
71
Leda serenidade deleitosa
Que representa em terra um paraíso;
Entre rubis e perlas, doce riso;
Debaixo de ouro e neve, cor de rosa;
Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se pode por arte e por aviso,
Como por natureza, ser fermosa;
Fala de quem a morte e a vida pende,
Rara, suave enfim, Senhora, vossa;
Repouso nela alegre e comedido:
Estas as armas são com que me rende
E me cativa Amor, mas não que possa
Despojar-me da glória de rendido.


Bem sei, Amor, que é certo o que receio,
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso mo negas, e mo juras
No teu dourado arco, e eu to creio.
A mão tenho metida no teu seio,
E não vejo meus danos às escuras,
E tu, contudo, tanto me asseguras
Que me digo que minto e que me enleio.
Não somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mim me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.
Oh poderoso mal a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano,
Me possa inda cegar um moço cego!
73
Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro, lasso e trabalhado,
De um naufrágio cruel já salvo a nado,
Só ouvir falar nele o faz medroso,
E jura que, em que veja bonançoso
O violento mar e sossegado,
Não entre nele mais, mas vai forçado
Pelo muito interesse cobiçoso;
Assi, Senhora, eu, que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me,
Minha alma, que de vós nunca se ausenta,
Dá-me por preço ver-vos, faz tornar-me
Donde fugi tão perto de perder-me.
74
Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente,
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer,
É um andar solitário entre a gente,
É nunca contentar-se de contente,
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade,
É servir, a quem vence, o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
75
Se pena por amar-vos se merece,
Quem dela livre está, ou quem isento?
Que alma, que razão, que' entendimento
Em ver-vos se não rende e obedece?
Que mor glória na vida s'oferece
Que ocupar-se em vós o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
Em ver-vos se não sente, mas esquece.
Mas se merece pena quem amando
Contino vos está, se vos ofende,
O mundo matareis, que todo é vosso:
Em mim podeis, Senhora, ir começando,
Que claro se conhece e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
76
Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas estendidos,
Fazeis que sua graça se acrescente;
Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios encendidos,
Se de cá me levais alma e sentidos,
Que fora, se de vós não fora ausente?
Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nasce e parece,
Se n'alma em doces ecos não o ouvisse?
Se imaginando só tanta beleza,
De si, em nova glória, a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah! quem a visse!
77
Foi já um tempo doce cousa amar,
Enquanto me enganava a esperança;
O coração com esta confiança
Todo se desfazia em desejar.
Ó vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana uma mudança!
Que, quanto é mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que há de durar.
Quem já se viu contente e prosperado,
Vendo-se em breve tempo em pena tanta,
Razão tem de viver bem magoado.
Porém, quem tem o mundo exper'mentado,
Não o magoa a pena, nem o espanta,
Que mal se estranhará o costumado.
78
Dos ilustres antigos que deixaram
Tal nome, que igualou fama à memória,
Ficou por luz do tempo a larga história
Dos feitos em que mais se assinalaram.
Se se com cousas destes cotejaram
Mil vossas, cada uma tão notória,
Vencera a menor delas a mor glória
Que eles em tantos anos alcançaram.
A glória sua foi, ninguém lha tome,
Seguindo cada um vários caminhos,
Estátuas levantando no seu Templo.
Vós, honra Portuguesa e dos Coutinhos,
Ilustre Dom João, com melhor nome
A vós encheis de glória, e a nós de exemplo.
79
Conversação doméstica afeiçoa,
Ora em forma de boa e sã vontade,
Ora de uma amorosa piedade,
Sem olhar qualidade de pessoa.
Se depois, porventura, vos magoa
Com desamor e pouca lealdade,
Logo vos faz mentira da verdade
O brando Amor, que tudo em si perdoa.
Não são isto que falo conjecturas
Que o pensamento julga na aparência,
Por fazer delicadas escrituras.
Metido tenho a mão na consciência,
E não falo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiência.
80
Esforço grande igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito tímido encerrados
E desfeitos depois em chuva e vento;
Ânimo da cobiça baixa isento,
Digno, por isso só, de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;
Gentileza de membros corporais
Ornados de pudica continência,
Obra por certo rara de natura:
Estas virtudes e outras muitas mais,
Dignas todas da Homérica eloqüência,
Jazem debaixo desta sepultura.
81
No mundo quis um tempo que se achasse
O bem por acerto ou sorte vinha;
E, por exp'rimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se exp'rimentasse;
Mas porque meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra e estado
Por ver se se mudava a sorte dura,
A vida pus nas mãos de um leve lenho;
Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado)
Já sei que deste meu buscar ventura,
Achado tenho já que não a tenho.
82
Vós que, de olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida cativais,
E que os outros cuidados condenais
Por indevidos, baixos e pequenos;
Se ainda do Amor domésticos venenos
Nunca provastes, quero que saibais
Que é tanto mais o amor depois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos.
E não cuide ninguém que algum defeito,
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito;
Antes o dobra mais; e, se atormenta,
Pouco e pouco o desculpa o brando peito,
Que Amor com seus contrários se acrescenta.
83
Que poderei do mundo já querer,
Que naquilo em que pus tamanho amor,
Não vi senão desgosto e desamor,
E morte, enfim, que mais não pode ser?
Pois vida me não farta de viver,
Pois já sei que não mata grande dor,
Se cousa há que mágoa dê maior,
Eu a verei, que tudo posso ver.
A morte a meu pesar me assegurou
De quanto mal me vinha; já perdi
O que perder o medo me ensinou.
Na vida desamor somente vi;
Na morte, a grande dor que me ficou:
Parece que para isto só nasci.
84
Pensamentos que agora novamente
Cuidados vãos em mim ressuscitais,
Dizei-me: ainda não vos contentais
De terdes quem vos tem tão descontente?
Que fantasia é esta, que presente
Cada hora ante meus olhos me mostrais?
Com sonhos e com sombras atentais
Quem nem por sonhos pode ser contente?
Vejo-vos, pensamentos, alterados,
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que é isto que vos traz tão enleados.
Não me negueis, se andais para negar-me,
Que, se contra mim estais alevantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.
85
Se tomar minha pena em penitência
Do erro em que caiu o pensamento,
Não abranda, mas dobra meu tormento,
A isto, e a mais obriga a paciência.
E se uma cor de morto na aparência,
Um espalhar suspiros vãos ao vento
Em vós não faz, Senhora, movimento,
Fique meu mal em vossa consciência.
E se de qualquer áspera mudança
Toda a vontade isenta Amor castiga
(Como eu vi bem no mal que me condena),
E se em vós não se entende haver vingança,
Será forçado (pois Amor me obriga)
Que eu só de vossa culpa pague a pena.
86
Os vestidos Elisa revolvia
Que lhe Enéias deixara por memória,
Doces despojos da passada glória,
Doces, quando seu Fado o consentia.
Entre eles a fermosa espada via
Que instrumento foi da triste história;
E, como quem de si tinha a vitória,
Falando só com ela, assi dizia:
-- Fermosa e nova espada, se ficaste
Só para executares os enganos
De quem te quis deixar, em minha vida,
Sabe que tu comigo te enganaste;
Que, para me tirar de tantos danos,
Sobeja-me a tristeza da partida.
87
Oh! Quão caro me custa o entender-te,
Molesto Amor, que, só por alcançar-te,
De dor em dor me tens trazido a parte
Onde em ti ódio e ira se converte!
Cuidei que, para em tudo conhecer-te,
Me não faltasse experiência e arte;
Agora vejo n'alma acrescentar-te
Aquilo que era causa de perder-te.
Estavas tão secreto no meu peito
Que eu mesmo, que te tinha, não sabia
Que me senhoreavas deste jeito.
Descobriste-te agora, e foi por via
Que teu descobrimento, e meu defeito,
Um me envergonha e outro me injuria.
88
Se, depois de esperança tão perdida,
Amor pela ventura consentisse
Que ainda alguma hora breve alegre visse
De quantas tristes viu tão longa vida,
Uma alma já tão fraca e tão caída,
Por mais alto que a sorte me subisse,
Não tenho para mim que consentisse
Alegria tão tarde consentida.
Não tão somente Amor me não mostrou
Uma hora em que vivesse alegremente,
De quantas nesta vida me negou,
Mas inda tanta pena me consente,
Que co contentamento me tirou
O gosto de alguma hora ser contente.
89
O raio cristalino se estendia
Pelo mundo, da Aurora marchetada,
Quando Nise, pastora delicada,
Donde a vida deixava, se partia.
Dos olhos, com que o Sol escurecia
Levando a vista em lágrimas banhada,
De si, do Fado e Tempo magoada,
Pondo os olhos no Céu, assi dizia:
-- Nasce, sereno Sol, puro e luzente;
Resplandece, fermosa e roxa Aurora,
Qualquer alma alegrando descontente:
Que a minha, sabe tu que, desde agora,
Jamais na vida a podes ver contente,
Nem tão triste nenhuma outra pastora.
90
No mundo poucos anos e cansados
Vivi, cheios de vil miséria dura;
Foi-me tão cedo a luz do dia escura,
Que não vi cinco lustros acabados.
Corri terras e mares apartados,
Buscando à vida algum remédio, ou cura,
Mas aquilo que enfim não quer ventura,
Não o alcançam trabalhos arriscados.
Criou-me Portugal na verde e cara
Pátria minha Alenquer, mas ar corrupto,
Que neste meu terreno vaso tinha,
Me fez manjar de peixes em ti, bruto
Mar, que bates na Abássia fera e avara,
Tão longe da ditosa pátria minha!
91
Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais
E, se torna, não tornam as idades.
Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos para um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes às vontades.
Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa, porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.
Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.
92
Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Qualquer alma farão segura e forte,
Porém Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
Têm do confuso mundo o regimento.
Efeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte,
Mas sabe que o que é mais que vida e morte,
Que não o alcança o humano entendimento.
Doutos varões darão razões subidas,
Mas são experiências mais provadas
E por isso é melhor ter muito visto.
Cousas há i que passam sem ser cridas
E cousas cridas há, sem ser passadas;
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
93
Fiou-se o coração de muito isento
De si, cuidando mal que tomaria
Tão ilícito amor tal ousadia,
Tal modo nunca visto de tormento.
Mas os olhos pintaram tão a tento
Outros que visto têm na fantasia,
Que a razão, temerosa do que via,
Fugiu, deixando o campo ao pensamento.
-- Ó Hipólito casto, que de jeito,
De Fedra, tua madrasta, foste amado,
Que não sabia ter nenhum respeito,
Em mim vingou o Amor teu casto peito;
Mas está desse agravo tão vingado,
Que se arrepende já do que tem feito.
94
Quem quiser ver d'Amor uma excelência
Onde sua fineza mais se apura,
Atente onde me põe minha ventura,
Por ter de minha fé experiência.
Onde lembranças mata a longa ausência,
Em temeroso mar, em guerra dura,
Ali a saudade está segura,
Quando mor risco corre a paciência.
Mas ponha-me Fortuna e o duro Fado
Em nojo, morte, dano e perdição,
Ou em sublime e próspera ventura:
Ponha-me enfim em baixo ou alto estado,
Que até na dura morte me acharão
Na língua o nome, n'alma a vista pura.
95
A D. Leonis Pereira
Vós, Ninfas da gangética espessura,
Cantai suavemente em voz sonora
Um grande Capitão, que a roxa Aurora
Dos filhos defendeu da noite escura.
Ajuntou-se a caterva negra e dura
Que na Áurea Quersoneso afouta mora,
Para lançar do caro ninho fora
Aqueles que mais podem que a Ventura.
Mas um forte Leão, com pouca gente,
A multidão, tão fera como néscia,
Destruindo castiga e torna fraca.
Pois, ó Ninfas, cantai, que claramente
Mais do que fez Leônidas em Grécia,
O nobre Leonis fez em Malaca.


SONETOS DA EDIÇÃO DE 1616
              96Eu cantei já, e agora vou chorando
              O tempo que cantei tão confiado;
              Parece que no canto já passado
              Se estavam minhas lágrimas criando.
              Cantei, mas se me alguém pergunta: -- Quando? --
              Não sei, que também fui nisso enganado.
              É tão triste este meu presente estado,
              Que o passado por ledo estou julgando.
              Fizeram-me cantar, manhosamente,
              Contentamentos não, mas confianças.
              Cantava, mas já era ao som dos ferros.
              De quem me queixarei, que tudo mente?
              Mas eu que culpa ponho às esperanças,
              Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?
              97
              Por sua Ninfa, Céfalo deixava
              Aurora, que por ele se perdia,
              Posto que dá princípio ao claro dia,
              Posto que as roxas flores imitava.
              Ele, que a bela Prócris tanto amava,
              Que só por ela tudo enjeitaria,
              Deseja de atentar se lhe acharia
              Tão firme fé, como nele achava:
              Mudado o trajo, tece o duro engano,
              Outro se finge preso, põe diante:
              Quebra-se a fé mudável e consente,
              Ó engenho sutil para seu dano!
              Vede que manhas busca um cego amante,
              Para que sempre seja descontente!
              98
              Sentindo-se tomada a bela esposa
              De Céfalo no crime consentido,
              Para os montes fugia do marido
              E não sei se de astuta ou vergonhosa.
              Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,
              De amor cego e forçoso compelido,
              Após ela se vai como perdido,
              Já perdoando a culpa criminosa.
              Deita-se aos pés da Ninfa endurecida
              Que do cioso engano está agravada;
              Já lhe pede perdão, já pede a vida.
              Oh, força de afeição, desatinada,
              Que da culpa contra ele cometida,
              Perdão pedia à parte que é culpada!
              99
              Senhor João Lopes, o meu baixo estado
              Ontem vi posto em grau tão excelente,
              Que vós, que sois inveja a toda a gente,
              Só por mim vos quiséreis ver trocado.
              Vi o gesto suave e delicado,
              Que já vos fez, contente e descontente,
              Lançar ao vento a voz tão docemente,
              Que fez ao ar sereno e sossegado.
              Vi-lhe em poucas palavras dizer quanto
              Ninguém diria em muitas. Eu só, cego,
              Magoado fiquei na doce fala.
              Mas mal haja a Fortuna e o Moço cego:
              Um, porque os corações obriga a tanto;
              Outra, porque os estados desiguala.
              100
              O céu, a terra, o vento sossegado,
              As ondas, que se estendem pela areia,
              Os peixes, que no mar o sono enfreia,
              O noturno silêncio repousado.
              O pescador Aônio, que, deitado
              Onde co vento a água se meneia,
              Chorando, o nome amado em vão nomeia,
              Que não pode ser mais que nomeado.
              -- Ondas -- dizia -- antes que Amor me mate,
              Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
              Me fizestes à morte estar sujeita.
              Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
              Move-se brandamente o arvoredo;
              Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
              101
              Erros meus, má fortuna, amor ardente,
              Em minha perdição se conjuraram;
              Os erros e a fortuna sobejaram,
              Que para mim bastava o amor somente.
              Tudo passei, mas tenho tão presente
              A grande dor das cousas que passaram,
              Que as magoadas iras me ensinaram
              A não querer já nunca ser contente.
              Errei todo o discurso de meus anos,
              Dei causa que a Fortuna castigasse
              As minhas mal fundadas esperanças.
              De Amor não vi senão breves enganos.
              Oh, quem tanto pudesse, que fartasse
              Este meu duro Gênio de vinganças!
              102
              Cá nesta Babilônia, donde mana
              Matéria a quanto mal o mundo cria;
              Cá donde o puro Amor não tem valia,
              Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
              Cá onde o mal se afina e o bem se dana,
              E pode mais que a honra a tirania;
              Cá onde a errada e cega Monarquia
              Cuida que um nome vão a desengana;
              Cá neste labirinto, onde a nobreza,
              Com esforço e saber pedindo vão
              Às portas da cobiça e da vileza;
              Cá neste escuro caos de confusão,
              Cumprindo o curso estou da natureza.
              Vê se me esquecerei de ti, Sião!
              103
              Correm turvas as águas deste rio,
              Que as do céu e as do monte as enturbaram;
              Os campos florescidos se secaram,
              Intratável se fez o vale, e frio;
              Passou o Verão, passou o ardente Estio,
              Umas cousas por outras se trocaram;
              Os fementidos Fados já deixaram
              Do mundo o regimento ou desvario.
              Tem o tempo sua ordem já sabida,
              O mundo, não; mas anda tão confuso,
              Que parece que dele Deus se esquece.
              Casos, opiniões, natura e uso
              Fazem que nos pareça desta vida
              Que não há nela mais que o que parece.
              104
              Despois que viu Cibele o corpo humano
              Do fermoso Átis seu verde pinheiro,
              Em piedade o vão furor primeiro
              Convertido, chorou seu grave dano.
              E fazendo a sua dor ilustre engano,
              A Júpiter pediu que o verdadeiro
              Preço da nova palma e do loureiro
              Ao seu pinheiro desse, soberano.
              Mais lhe concede o filho poderoso:
              Que as estrelas, subindo, tocar possa,
              Vendo os segredos lá do Céu superno.
              Oh, ditoso Pinheiro! Oh, mais ditoso
              Quem se vir coroar da folha vossa,
              Cantando à vossa sombra verso eterno!
              105
              Na desesperação já repousava,
              O peito longamente magoado,
              E, com seu dano eterno concertado,
              Já não temia, já não desejava,
              Quando uma sombra vã me assegurava
              Que algum bem me podia estar guardado
              Em tão fermosa imagem, que o traslado
              Na alma ficou, que nela se enlevava.
              Que crédito que dá tão facilmente
              O coração àquilo que deseja,
              Quando lhe esquece o fero seu destino!
              Oh, deixem-me enganar, que eu sou contente!
              Que, posto que maior meu dano seja,
              Fica-me a glória já do que imagino.
              106
              Senhora minha, se a Fortuna imiga,
              Que em minha fim com todo o Céu conspira,
              Os olhos meus de ver os vossos tira,
              Porque em mais graves casos me persiga,
              Comigo levo esta alma, que se obriga,
              Na mor pressa de mar, de fogo, de ira,
              A dar-vos à memória que suspira
              Só por fazer convosco eterna liga.
              Nesta alma, onde a Fortuna pode pouco,
              Tão viva vos terei, que frio e fome
              Vos não possam tirar, nem vãos perigos.
              Antes co som da voz, trêmulo e rouco,
              Bradando por vós, só com vosso nome
              Farei fugir os ventos e os imigos.
              107
              Árvore, cujo pomo belo e brando
              Natureza de leite e sangue pinta,
              Onde a pureza, de vergonha tinta,
              Está virgíneas faces imitando,
              Nunca da ira e do vento, que arrancando
              Os troncos vão, o teu injúria sinta,
              Nem por malícia de ar te seja extinta
              A cor, que está teu fruito debuxando.
              Que pois me emprestas doce e idôneo abrigo
              A meu contentamento, e favoreces,
              Com teu suave cheiro minha glória,
              Se não te celebrar como mereces,
              Cantando-te, sequer farei contigo
              Doce, nos casos tristes, a memória.
              108
              Por cima destas águas, forte e firme,
              Irei por onde as sortes ordenaram,
              Pois por cima de quantas me choraram
              Aqueles claros olhos pude vir-me.
              Já chegado era o fim de despedir-me,
              Já mil impedimentos se acabaram,
              Quando rios de amor se atravessaram,
              A me impedir o passo de partir-me.
              Passei-os eu com ânimo obstinado,
              Com que a morte forçada e gloriosa
              Faz o vencido já desesperado.
              Em que figura, ou gesto desusado,
              Pode já fazer medo a morte irosa,
              A quem tem a seus pés rendido e atado?
              109
              O filho de Latona, esclarecido,
              Que com seu raio alegra a humana gente,
              O hórrido Píton, brava serpente,
              Matou, sendo das gentes tão temido.
              Feriu com arco e de arco foi ferido,
              Com ponta aguda de ouro reluzente;
              Nas Tessálicas praias, docemente,
              Pela Ninfa Penéia andou perdido.
              Não lhe pôde valer, para seu dano,
              Ciência, diligências, nem respeito
              De ser alto, celeste e soberano.
              Se este nunca alcançou nem um engano
              De quem era tão pouco em seu respeito,
              Eu que espero de um ser que é mais que humano?
              110
              Presença bela, angélica figura,
              Em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
              Gesto alegre, de rosas semeado,
              Entre as quais se está rindo a fermosura;
              Olhos, onde tem feito tal mistura
              Em cristal branco e preto marchetado,
              Que vemos já no verde delicado
              Não esperança, mas inveja escura;
              Brandura, aviso e graça, que aumentando
              A natural beleza c'um desprezo,
              Com que, mais desprezada, mais se aumenta,
              São as prisões de um coração que, preso,
              Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
              Como faz a Sereia na tormenta.
              111
              Diversos dons reparte o Céu benino,
              E quer que cada uma um só possua:
              Assi, ornou de casto peito a Lua,
              Ornamento do assento cristalino.
              De graça, a Mãe fermosa do Menino,
              Que nessa vista tem perdido a sua:
              Palas de discrição, que imite a tua:
              Do valor, Juno, só de império dino.
              Mas junto agora o mesmo Céu derrama
              Em ti o mais que tinha, e foi o menos,
              Em respeito do Autor da natureza;
              Que a seu pesar te dão, fermosa Dama,
              Diana honestidade, e graça Vênus,
              Palas o aviso seu, Juno a nobreza.
              112
              Tal mostra dá de si vossa figura,
              Sibila, clara luz da redondeza,
              Que as forças e o poder da Natureza
              Com sua claridade mais apura.
              Quem viu uma confiança tão segura,
              Tão singular esmalte da beleza,
              Que não padeça mais, se ter defesa
              Contra vossa gentil vista procura?
              Eu, pois, por escusar essa esquivança,
              A razão sujeitei ao pensamento,
              Que, rendida, os sentidos lhe entregaram.
              Se vos ofende o meu atrevimento,
              Inda podeis tomar nova vingança
              Nas relíquias da vida, que escaparam.
              113
              A Morte, que da vida o nó desata,
              Os nós que dá o Amor cortar quisera
              Na Ausência, que é contra ele espada fera,
              E co Tempo, que tudo desbarata.
              Duas contrárias, que uma a outra mata,
              A Morte contra o Amor ajunta e altera,
              Uma é Razão contra a Fortuna austera,
              Outra contra a Razão, Fortuna ingrata.
              Mas mostre a sua imperial potência
              A Morte, em apartar dum corpo a alma;
              Duas num corpo o Amor ajunte, e una;
              Porque assi leve, triunfante, a palma
              Amor da Morte, apesar da Ausência,
              Do Tempo, da Razão e da Fortuna.
              114
              Julga-me a gente toda por perdido,
              Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
              Andar sempre dos homens apartado
              E dos tratos humanos esquecido.
              Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
              E quase que sobre ele ando dobrado,
              Tenho por baixo, rústico, enganado,
              Quem não é com meu mal engrandecido.
              Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
              Busquem riquezas e honras a outra gente,
              Vencendo ferro, fogo, frio e calma,
              Que eu só em humilde estado me contento
              De trazer esculpido, eternamente,
              Vosso fermoso gesto dentro n'alma.
              115
              Sempre a Razão vencida foi de Amor,
              Mas, porque assi o pedia o coração,
              Quis Amor ser vencido da razão.
              Ora que caso pode haver maior?
              Novo modo de morte e nova dor,
              Estranheza de grande admiração
              Que perca suas forças a afeição,
              Por que não perca a pena o seu rigor!
              Pois nunca houve fraqueza no querer,
              Mas antes muito mais se esforça assim
              Um contrário com outro por vencer.
              Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
              Não creio que é razão, mas há-de ser
              Inclinação que eu tenho contra mim.
              116
              Que modo tão sutil da Natureza!
              Para fugir ao mundo e seus enganos,
              Permite que se esconda em ternos anos,
              Debaixo de um burel tanta beleza!
              Mas não pode esconder-se aquela alteza
              E gravidade de olhos soberanos,
              A cujo resplandor entre os humanos
              Resistência não sinto, ou fortaleza.
              Quem quer livre ficar de dor e pena,
              Vendo-a, ou trazendo-a na memória,
              Na mesma razão sua se condena.
              Porque quem mereceu ver tanta glória,
              Cativo há-de ficar, que Amor ordena
              Que de juro tenha ela esta vitória.
              117
              Seguia aquele fogo que o guiava,
              Leandro, contra o mar e contra o vento;
              As forças lhe faltavam já e o alento,
              Amor lhas refazia e renovava.
              Despois que viu que a alma lhe faltava,
              Não esmorece, mas no pensamento,
              (Que a língua já não pode) seu intento
              Ao mar que lho cumprisse encomendava.
              -- Ó mar (dizia o moço só consigo),
              Já te não peço a vida, só queria
              Que a de Hero me salves, não me veja.
              Este meu corpo morto, lá o desvia
              Daquela torre, sê-me nisto amigo,
              Pois no meu mor bem me houveste inveja.
              118
              Dos Céus à Terra desce a mor Beleza,
              Une-se à carne nossa e fá-la nobre
              E, sendo a humanidade dantes pobre,
              Hoje subida fica à mor alteza.
              Busca o Senhor mais rico a mor pobreza,
              Que, como ao mundo o seu amor descobre,
              De palhas vis o corpo tenro cobre
              E por elas o mesmo Céu despreza.
              Como Deus em pobreza à terra desce?
              O que é mais pobre tanto lhe contenta,
              Que só rica a pobreza lhe parece?
              Pobreza este Presépio representa,
              Mas tanto por ser pobre já merece,
              Que quanto é pobre mais, mais lhe contenta.





SONETO DA EDIÇÃO DE 1663
              119Doce contentamento já passado
              Em que todo o meu bem só consistia,
              Quem vos levou de minha companhia
              E me deixou de vós tão apartado?
              Quem cuidou que se visse neste estado
              Naquelas breves horas de alegria,
              Quando minha ventura consentia
              Que de enganos vivesse meu cuidado?
              Fortuna minha foi cruel e dura
              Aquela que causou meu perdimento,
              Com a qual ninguém pode ter cautela;
              Nem se engane nenhuma criatura,
              Que não pode nenhum impedimento
              Fugir do que ordena sua estrela.





SONETOS ESCOLHIDOS DAS EDIÇÕES POSTERIORES
(1668, 1685 e 1861)
              120

              De quantas graças tinha, a Natureza
              Fez um belo e riquíssimo tesouro,
              E com rubis e rosas, neve e ouro,
              Formou sublime e angélica beleza.Pôs na boca os rubis, e na pureza
              Do belo rostro as rosas, por quem mouro;
              No cabelo o valor do metal louro;
              No peito a neve, em que a alma tenho acesa.
              Mas nos olhos mostrou quanto podia,
              E fez deles um sol, onde se apura
              A luz mais clara que a do claro dia.
              Enfim, Senhora, em vossa compostura
              Ela a apurar chegou quanto sabia
              De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.


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